A LINGUAGEM DA INFÂNCIA EM TEMPO DE CRISE. Artigo

 

A LINGUAGEM DA INFÂNCIA EM TEMPO DE CRISE –  do medo à esperança

Ana Mourato

Uma menina dizia-me: “Em Portugal os meus pais disseram que está melhor do que noutros países, mas, quando vemos as notícias dos outros países, a nossa cabeça mistura tudo e deixa de perceber em qual país é que é pior…fico só a sentir uma coisa má e fico com medo.”

Medos

A ansiedade e os medos podem minar a esperança e o sentimento de segurança, podem transformar este pesadelo mundial num só pesadelo interno, sem escape e sem suporte.

O momento atual é vivido com apreensão. Cresce, dentro das casas onde as famílias estão agora confinadas, a angústia face à incógnita do que aí vem. Emerge a dúvida em relação ao que se diz a quem está por perto e ao que fica por dizer. Apodera-se dos lares um misto de compreensão, zanga, tristeza, e, embora com a sensação de estarem mais protegidas, o isolamento das famílias prende-as numa pele que se arrepia a cada notícia de perda e a cada abraço que fica por dar. Toda a situação ameaça deixar-nos sem um lugar envelope onde podemos estar seguros e antecipar a reparação. Perante este cenário real, como o enfrentar de forma a que possamos proteger, a par, a nossa saúde física e mental? Dentro de cada casa pode haver reações de sobrecarga, confusão, desorientação, amedrontamento, ansiedade, anestesia, insensibilidade. Umas pessoas podem ter reações mais leves outras mais pesadas.

Esperança

O envolvimento social, a solidariedade, o trabalho incansável de profissionais de saúde e de órgãos do estado, as diferentes linhas de apoio à saúde mental*, a disponibilidade gratuita de toda uma série de serviços, mesmo que por telefone, estruturam-se num apoio mais organizador e esperançoso para todos. A saúde mental tem que ter lugar neste caminho que estamos a viver. O apoio a este nível proporciona a escuta, a contenção e a devolução da tranquilidade logo a possibilidade de reorganização pessoal familiar e social.

Para além deste suporte é importante anteciparmos alguns movimentos que possam surgir no seio familiar nomeadamente com bebés e crianças. A nossa capacidade reforçada de resposta poderá ajudar a superar este momento delicado que assola a humanidade.

Como podemos facilitar a escuta, o diálogo, e a contenção das angústias e medos dos bebés e crianças?

As crianças observam os adultos e veem-nos como modelos, observam os seus mecanismos para lidar com as próprias emoções, no campo do autocontrolo, do controlo do humor e do respeito pelos outros. Desta forma, é importante que a pessoa no papel de cuidador consiga desabafar, entender-se a si próprio e às suas emoções, encontre momentos para relaxar, para se organizar, e também para ajudar os outros.

As crianças mais pequenas podem não entender tudo o que se passa à sua volta mas captam tudo com os seus sensores emocionais e, mais ainda nestes momentos, precisam muito do apoio dos cuidadores para se sentirem seguras.

As crianças dão-nos alertas face às suas dificuldades, é importante estarmos atentos. Poderão apresentar dificuldades em adormecer ou ter noites mais atribuladas, podem recusar o momento da refeição ou comer tudo sofregamente como se tivessem um apetite interminável, poderão mostrar-se instáveis, irritadas ou muito retraídas. Na realidade as reações podem ser diversas, podem também regredir em determinados comportamentos (por exemplo: voltar a urinar na cama, a chuchar o dedo), solicitar ainda mais a presença e a atenção dos cuidadores, brincar menos ou repetirem as brincadeiras relacionadas com a situação que as está a perturbar. Há crianças que também podem acreditar que foram responsáveis pelo acontecimento ou ainda por outras coisas más, desenvolvendo novos medos, podem tornar-se menos afetuosas, sentirem-se sós ou até preocupadas em proteger outras pessoas queridas.

Se os pais sabem que não dá para explicar ao bebé o que se está a passar, então como fazer para o serenar?

Este pode ser um momento em que a ansiedade, bem como o reboliço interno familiar, poderão fazer emergir no bebé uma sensação de indisponibilidade por parte dos adultos e um aumento do sentimento de insegurança.

Cabe ao adulto, potencial elemento regulador do bebé, encontrar dentro de si um lugar para o acolher. Dar colo, embalar, falar num tom de voz calmo e suave, cantar serena e lentamente ao ouvido. É igualmente importante tentar manter as rotinas (horários das refeições, sestas, brincadeiras, banho), tal como garantir que o bebé fica confortável e seguro, longe do barulho e confusões, dar carinho, mimos e abraços. Se a voz se adocicar, se o nosso olhar se cruzar docemente com o do bebé, talvez possamos encontrar um ponto comum, um lugar de sossego onde a paz e a esperança se encontrem. A linguagem de contenção face aos movimentos mais ansiosos do bebé é mais sensorial do que verbal, mais cinestésica do que explicativa.

Uma mãe dizia-me: “Quando eu estou mais cansada, mais tensa, é que lhe dá aqueles ataques de choro, parece que escolhe os momentos.” Na realidade o bebé reage aos momentos, não é por acaso que em situações mais tensas há uma maior probabilidade do bebé reagir negativamente ficando igualmente tenso e instável. É perante esta compreensão que podemos ser mais tolerantes e empáticos.

Se houver mais do que um adulto no seio familiar poderá ser mais fácil coordenar os tempos de presença, e, quando um dos adultos está mais tenso, passar a vez ao que está mais sereno podendo este devolver uma resposta mais contentora e apaziguadora ao bebé.

A partir dos 2/3 anos, dependendo da maturidade de cada criança, o adulto já poderá dar mais espaço ao diálogo relativamente ao porquê de estar em casa, ao porquê de usarem máscaras ou luvas, ao que se passa na realidade. No entanto a explicação tem que ser simples e curta. Acima de tudo a criança quer perceber se pode continuar a contar com o adulto, se pode continuar a sentir-se protegida e segura por aqueles que dela cuidam.

Tal como há expressões que apenas trazem medo e insegurança (ex: “não vás para longe senão o monstro come-te” ou “os homens maus levam-te”), também a explicação dada às crianças, acerca do coronavirús, chamando-lhe “monstro” ou “bicho mau” pouco ou nada traz senão a nossa descarga de zanga quanto a este virús malvado e a sensação de medo e desproteção da criança. É importante termos a noção que ao designarmos o vírus por um “bicho mau que anda lá fora a querer comer as pessoas e que é por isso que nos temos que manter dentro de casa” não devolve nada de tranquilizador à criança, já por si mais pequena e indefesa. É importante que a possamos tranquilizar, garantindo que estamos por perto e somos fortes o suficiente para a proteger, utilizando um discurso suficientemente pacifico, concreto e entendível para a criança

Exemplo ilustrativo de uma possível abordagem: “Por exemplo quando ficamos doentes é por causa de um bichinho muito pequeno que nos provoca febre, tosse, etc e normalmente tomamos remédios e passa. Desta vez esse bicharoco é mais forte e precisa de outro remédio ainda mais forte que os doutores estão a tentar descobrir. Entretanto, como esse bichinho passa muito rapidamente de pessoa para pessoa, como os piolhos, os senhores que decidem as regras pediram que ficássemos em casa para o fazer parar de saltar. Custa muito porque ficamos longe das pessoas queridas para nós, tentaremos encontrar outras formas de estar perto através de telefone e de vídeos. Tudo passa, por isso isto também vai passar, temos que esperar, como quando estamos à espera do nosso dia de anos e parece que nunca mais chega. Há uma coisa muito importante, nós estamos aqui juntos, vamos fazer algumas coisas que os médicos disseram para ajudar a que esse bichinho não salte para nós (medidas de higiene) e vamos conseguir pôr tudo no lugar.”

Se a criança mostrar sinais de ansiedade e medos como os sinais descritos acima, dedique-lhes tempo adicional, lembre-as regularmente que estão seguras. Se surgir um sentimento de culpa explique-lhes que elas nada têm a ver com isto, mantenha o máximo possível as rotinas e horários, dê respostas simples face ao que aconteceu, sem detalhes amedrontadores, deixe que fiquem perto dos adultos sempre que necessitarem, seja paciente caso comecem a regredir, ofereça a possibilidade de brincadeiras e de relaxamento. Tenha atenção também para que não ouçam histórias tristes a toda a hora, proteja-as o mais possível dos telejornais e noticias potencialmente ansiogénicas. E, se sentir necessidade, ligue para uma linha de apoio.

É importante manter a calma o mais possivel, falar de modo suave e gentil, escutar a visão das crianças sobre o problema, tentar conversar ao nível deles mantendo a mesma altura e contacto visual, usando palavras e explicações que ela possa entender. Ouça as crianças, e, em vez de lhe dar de imediato uma resposta, tente perceber o porquê do seu sentimento. Por exemplo, se a criança perguntar “Vamos todos ficar doentes?” Em vez de responder de imediato, podemos perguntar: “Porque pensas isso?” A criança poderá falar dos seus medos e clarificar algumas dúvidas consigo.

Tenha em conta a ansiedade da criança, não a minimizando, tente entender colocando-se no lugar dela, se deixarmos que as crianças cheguem ao fim do seu raciocínio estamos a permitir que elas partilhem o que mais as preocupa.

E se ficar apenas o silêncio? Respire fundo, não o tema. Se vier um momento de silêncio e se tiver dúvidas face ao que responder, abrace-a, conforte-a, relembre-a que estará segura consigo.

E no caso de morrer alguém?

No caso de haver mortes familiares, se alguém próximo estiver muito doente, ou se a criança ouviu falar sobre isso e questionou o adulto, faz sentido falar sobre essa temática. Nesse caso, não receie falar sobre o que aconteceu, sobre a tristeza que estão a viver. Se não falar sobre o que se passa e o ambiente em casa for pesado e absolutamente triste, pode trazer à criança sentimentos de incompreensão, de medo, de culpabilidade. Se não há espaço para falar da dor e da tristeza, a criança sente que também ela não vai poder partilhar o que sente. As crianças são permeáveis ao não-dito. Caso não fique claro o que se está a passar, se ela apenas aceder a trocas de olhares e a expressões de rosto fechadas e pesarosas, poderá ficar muito angustiada e sozinha com os seus pensamentos. É importante contar-lhe a verdade, embora não tenhamos que contar toda a verdade, poupemos as crianças de pormenores de agonia ou de grande sofrimento.

Exemplo de abordagem: “Estou triste porque o A está muito doente e não sabemos se vai conseguir vencer a luta com este bichinho. Estão a tentar usar os remédios que conhecem até agora e que podem vencer o virús mas o A está muito fraquinho. Vamos esperar que tudo corra bem. Até lá, para sermos mais fortes, damos um abraço apertado.”

ou

Estou triste porque o A não aguentou a luta contra este vírus. Os remédios não foram descobertos a tempo do A vencer esta luta. É natural que tenhamos vontade de chorar ou que fiquemos muito zangados contra este bicharoco mas acima de tudo vamos pensar nas coisas boas que nos lembramos do A. Podemos fazer-lhe um desenho bonito sobre como gostamos dele, ficará para nós como uma medalha que se oferece a alguém que fez uma coisa importante.”

Até ao início da adolescência continua ser importante a objetividade e o discurso curto, também continua a ser importante evitar os pormenores dramáticos e grandes descrições terríveis e assustadoras do que se passa.

Mediante o período desenvolvimental da criança assim poderemos ajustar o discurso e explicar como funciona um vírus no corpo das pessoas, falar mais aprofundadamente de sentimentos e de pensamentos que ocorram na criança.

É importante perceber que não podemos proteger as crianças de todas as ansiedades. Sabemos que a experiência fá-los crescer e que as crianças nos surpreendem com as suas capacidades reorganizadoras. No entanto, o adulto, terá um maior sucesso na relação com a criança e na sua contenção se utilizar uma linguagem de precaução e de esperança, elas deverão sentir-se envolvidas numa luta que venceremos juntos.

Este será mais um desafio da vida, entre outros que a humanidade já presenciou, sejamos resilientes, contemos uns com os outros, acreditemos nos gestos humanos e solidários que emergem diariamente e que nos trazem a esperança de que a saúde física e mental estão a ser, o melhor possível, cuidadas e resguardas.

Ana Mourato

 

Bibliografia:

Confinement. Repérer les signes de stress et d’anxieté chez l’enfant. Enfance majuscule. Bientraitance et defense des droits de l’enfant . 24 Março 2020. http://enfance-majuscule.fr/reperer-les-signes-de-stress-et-danxiete-chez-lenfant/

Organização Mundial de Saúde, War Trauma Foundation e Visão Global Internacional (2015). Primeiros cuidados psicológicos: Guia para trabalhadores de campo. OMS: Genebra

Ordem dos psicólogos. Documentos de Apoio. https://www.ordemdospsicologos.pt/pt/covid19.

Teixeira, P. O isolamento e a quarentena de crianças devido à covid-19 — algumas notas para as famílias com base na National Association of School Psychologists). Jornal Público 13 Março 2020 https://www.publico.pt/2020/03/13/opiniao/opiniao/isolamento-quarentena-criancas-devido-covid19-notas-familias-1907335

 

*Algumas linhas de apoio à saúde mental (para a população em geral)

Ana Mourato – Apoio à infância e familias – Covid 19. Atendimento gratuito com marcação por email: ouvir.pensar@gmail.com

Administração Regional de Saúde do Norte – 220411200 (8h às 20h)

Agrupamento de Centros de Saúde do Alentejo Central – 266758774 (9h às 17h)

Centro Hospitalar Barreiro Montijo – para os utentes tem um linha de atendimento diária (9 às 20 horas). Telefone geral 212147300, extensão 5012

Centro Hospitalar Cova da Beira – 969111031 (9h às 12h)

Fundação Nossa Senhora do Bom Sucesso – 211533854 (10h às 13h e 14h às 18h)

Linha Conversa Amiga (INATEL) – 808237327 |210027159 (15h às 22h- semana; 19h às 22h – fim de semana)

Município de Mafra – Disponibilização de uma linha de apoio psicológico para a população em geral –  “A linha que nos une”. Telefone: 261 810 261 (9h00 às 17h00)

Ordem dos Psicólogos, Direção Geral de Saúde e Fundação Calouste Gulbenlian – 808242424

PsiQuaren10– Apoio gratuito na gestão emocional, individual da família  – psiquaren10@gmail.com

Santa Casa da Misericórdia de Lisboa: https://acalma.online/ 

Sociedade Portuguesa de Psicanálise – Linha de Apoio Gratuito para atendimento da Comunidade (8h – 24h) – “Vira(l)Solidariedade”. Telefone: 300 051 920

SOS Voz Amiga (linha telefónca de prevenção do suicidio) – 213 544 545 |912802669 | 963524660 (16h às 24h)